sexta-feira, 6 de novembro de 2009

A DITADURA DO ASFALTO, por Augusto Franco

Belo Horizonte, que já foi chamada de "cidade jardim", tem hoje pelo menos quatro vezes mais asfalto do que áreas verdes. A superfície de ruas asfaltadas na capital mede cerca de 31,2 quilômetros quadrados, o equivalente a 4,37 vezes a área ocupada pelos parques e jardins, que é de 7,145 quilômetros quadrados, segundo informações da Fundação de Parques Municipais e da Secretaria de Políticas Urbanas. O resultado dessa matemática é a impermeabilização do solo, dificultando a absorção de água de chuva - o que provoca enchentes - e favorecendo a formação de zonas de calor.

Colocados em linha reta, os 3.126 quilômetros de ruas com cobertura asfáltica seriam suficientes para fazer uma estrada que chegaria até Rio Branco, capital do Acre, no Norte do país. O excesso de asfalto, impermeável, aquece a temperatura e diminui a umidade relativa do ar ao longo dos meses secos, além de poluir mais os rios nas primeiras chuvas - as águas escoem por galerias de concreto, levando toda a sujeira das vias diretamente para os cursos d’água onde desembocam.

Órgãos de meteorologia já começam a detectar mudanças no microclima da cidade. Dados do 5º Distrito do Instituto Nacional Meteorologia (Inmet), que fica no Bairro Cidade Jardim, apontam que a temperatura média do ano na capital mineira passou de 21,8 graus, em 2006, para 22,3, em 2007. O volume total de chuvas, que em 2003 foi de 1.723,5 milímetros, e de 1.943,8 milímetros em 2004, também vem caindo ano a ano, ficando nos 1.185,8 milímetros em 2007. Apesar de não existirem estudos apontando a relação entre o avanço do asfalto e do concreto a temperaturas mais altas e menos chuvas, especialistas afirmam que a associação é inevitável.

Uma das soluções apontadas para reverter o quadro é a troca das áreas cobertas de asfalto por calçamentos de pedras e bloquetes, que permitem a absorção da água pelo solo. Outra opção seria criar mais parques com corpos d’água nos bairros, para aumentar a umidade do ar. Estudo realizado na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) indica que as temperaturas registradas na Praça 7 e no Parque Municipal, no mesmo dia e na mesma hora, chegaram a apresentar seis graus de diferença.

"O conceito de conforto térmico tem a ver com a relação entre ventos, temperatura da atmosfera e umidade do ar. A presença de áreas verdes e corpos d’água, assim como os corredores para vento, deveriam fazer parte do planejamento urbano", defende o professor de Geografia do Centro Universitário de Belo Horizonte (Uni-BH) Wellington Lopes, um dos responsáveis pelo estudo na UFMG, realizada em 2000.

O trabalho de pesquisa constatou que áreas sem planejamento, como os bairros da Floresta, Padre Eustáquio e Buritis e algumas áreas de Venda Nova são mais quentes do que a Praça 7, mesmo com menor fluxo de veículos e pessoas. "Os sistemas de microclimas são sistêmicos, não lineares. Geralmente, fatores como altitude, disposição dos prédios e os materiais de revestimento dos edifícios acabam tendo grande influência", destaca.

Moradora do Bairro Comerciários, em Venda Nova, a dona de casa Michele Eridan, 22 anos, acredita que nos últimos cinco anos a região esquentou, em especial a Rua Padre Pedro Pinto. O Comerciários foi apontado pelo estudo de temperaturas como o mais quente da capital. Às 15 horas do dia 15 de abril de 2000 chegou a marcar temperatura de 32 graus, enquanto que, no Centro, no mesmo dia e horário, os termômetros não passavam dos 27,2 graus. Acompanhada da filha Maria Clara, de um ano, a jovem tomava um sorvete antes de voltarem para casa depois de um passeio no centro comercial do bairro. "Aqui não tem mais inverno", diz.

É o que também acredita o comerciante Geraldo Sérgio de Almeida, 40 anos, que há mais de duas décadas tira o sustento da família de uma pequena máquina de sorvete. "O frio em BH não existe mais, é muito fraco. Pelo menos aqui na avenida, a temperatura é mais ou menos assim o ano todo. Só cai um pouco em uma ou duas semanas, lá para abril ou maio, e quando chove. Essa temperatura, esse calor, é o ano todo", assegura.

Para a babá Rosimeire Ermelinda Santos, que mora no Bairro São João Batista, em Venda Nova, e trabalha no Bandeirantes, na Pampulha, ser vizinha de uma área verde não só é bom para reduzir a temperatura, mas também para melhorar o astral da casa. Vizinha de uma mata que ocupa três lotes do bairro, onde foi instalada uma pequena Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN), ela afirma que ainda passa frio à noite, como no interior. "Lá em casa, a gente dorme com coberta, ouve grilo e passarinho, e vai mico pela manhã. Parece que a gente está na roça", comenta.

De acordo com dados da Secretaria Municipal Adjunta de Meio Ambiente, a área verde pública e privada na capital é de 40 metros quadrados por habitante, algo em torno de 93 quilômetros quadrados no total. O cálculo inclui também as áreas de lagoas, como a Pampulha e a Barragem Santa Lúcia.


Povo associa tipo de pavimento a status


A placa ou faixa armada entre os postes avisa: "Essa obra é uma realização do vereador...". Para ver uma destas, não é necessário ir longe. O asfalto ainda é tido como trunfo em campanhas eleitorais e garantia de votos em diversos pontos de Belo Horizonte. Desde junho deste ano, faixas com a indicação estão dispostas em vários bairros, como São Bento e Santo Antônio, sempre próximas a cartazes dos vereadores responsáveis. Essa política é aceita por grande parte da população, por ainda associar asfalto a progresso e piso de terra ou calçamento a roça.

Segundo informações da Câmara Municipal, não é possível identificar as ruas asfaltadas ao longo do ano, uma vez que os projetos de lei apresentados pedem autorização para determinadas áreas e bairros, e não para ruas específicas.

É essa "cultura do asfalto" que deveria ser combatida, de acordo com o presidente do Comitê de Defesa do Rio das Velhas, Rogério Sepúlveda, coordenador de mobilização do Projeto Manuelzão, da UFMG. "Uma das nossas propostas para a cidade é que o asfalto seja mantido nas vias principais, mas substituído por bloquetes ou calçamento nas ruas de acesso apenas de moradores, o chamado trânsito local. Mas, para isso, é preciso mudar a cultura do povo de BH e do Brasil, que associa o asfalto ao desenvolvimento", destaca.

Segundo ele, o modelo já é adotado em algumas cidades da Alemanha e da Holanda, onde as políticas ambientais são mais avançadas. Nesses países, os fundos de rios antes canalizados também têm sido destruídos. Os leitos naturais contribuem para que a fauna, flora e a própria terra limpem os corpos d’água, conforme afirma.

Outro problema grave destacado pelo ambientalista é a poluição difusa. Trata-se do acúmulo de partículas queimadas pelos canos de descarga de automóveis, ônibus e caminhões, restos de óleo e poeira que ficam sobre a superfície do asfalto. Com as primeiras chuvas, todo este resíduo é "lavado" do solo, sendo carregado diretamente para as redes de captação de águas pluviais e, em seguida, para os rios, onde chegam sem nenhum tipo de tratamento. "É um problema grave, que a maioria das pessoas simplesmente não sabe que existe", destaca.

De acordo com o professor do Departamento de Engenharia Hidráulica da Escola de Engenharia da UFMG, Nilo Nascimento, uma medida mais simples para começar essa mudança é instalar calçamento com bloquetes nas áreas de estacionamentos da capital, como os shoppings e centros de exposição. "Nesses locais temos grandes áreas onde o calçamento com bloquetes não tem grande impacto para o trânsito de veículos. Permitir que a água das chuvas seja absorvida nesses pontos já seria uma contribuição", afirma.

O professor lembra que a construção deste tipo de calçamento não é mais cara que o asfaltamento, mas deve ser acompanhada de alguns estudos prévios. A possibilidade de contaminação de um lençol freático ou da água infiltrada voltar à superfície dificultariam a troca. "Outra provável melhoria para o clima da cidade seria a implantação de mais áreas verdes. Parques com árvores absorvem melhor a chuva, que penetra no solo, retiram gás carbônico do ar e ainda aumentam a umidade pelo fenômeno da «evapotranspiração», que as plantas fazem durante a noite", comenta.

De acordo com dados da Secretaria Municipal de Políticas Urbanas, BH tem 3.912,21 quilômetros de vias com algum tipo de pavimentação, dos quais 3.126,99 quilômetros são de asfalto, 749,87 de calçamento com pedra, 25,9 de cimento, 2,6 de bloquete, 0,56 de cascalho. Há ainda 6,17 quilômetros de via sob forma de escada. As vias sem pavimentação somam 373,27 quilômetros.