segunda-feira, 16 de maio de 2011

Professora Doutora Zélia Viana responde ao blog

Recebi da minha querida amiga Zélia Viana Paim, Doutora em Linguística pela UFSM, o seguinte e-mail que transcrevo abaixo:

Júlio! Júlio!



meu caro amigo, a tarefa que me pedes é impossível ser tratada em poucos livros quanto mais em poucas linhas próprias para um blog. Soma-se a isso a minha posição como estudiosa da língua portuguesa ostensivamente contra os paragramáticos da imprensa nacional. Claro que escrevi um texto, que segue anexo, com uma postura mais de estudiosa do que de professora. Ao final, faço referência a leituras possíveis e a um site em especial que gostaria que visitasse:
 (Polêmica ou Ignorância? Discussão sobre Livro Didático só Revela Ignorância da Grande Imprensa)

Um grande abraço,


Zélia

A Norma Padrão e os Usos da Língua


O ensino da língua portuguesa tem sido alvo de debate de várias áreas que centram seus estudos segundo pressupostos e pontos de vista próprios às suas áreas de conhecimento. Os linguístas integram esse debate há mais ou menos 30 anos. A crítica dos linguístas recaiu, principalmente, sobre o ensino normativo da língua, desconsiderando a sua realidade multifacetada e confundindo o ensino de gramática com o ensino de língua.

Para entrar nesse debate, inicio lembrando que a língua portuguesa, na sua caminhada de séculos, foi enriquecendo e mudando no léxico, na pronúncia, na morfologia e na sintaxe. Essa evolução temporal, essa mudança diacrônica ou histórica é um dos aspectos mais evidentes da variação inerente a qualquer língua. Mas a língua também varia no espaço, razão porque o português apresenta as variedades nacionais de Portugal e do Brasil, por exemplo.

As variedades nacionais da língua portuguesa, no entanto, não apresentam uma uniformidade interna, são constituídas por variantes que denominamos dialetos: variantes espaciais (dialetos geográficos), variantes de classe social (dialetos diastráticos), variantes de grupos de idade (dialetos etários), variantes de sexo (dialetos masculino e feminino), variantes de geração (variantes diacrônicas). Do ponto de vista linguístico, não há hierarquia entre as variantes de uma língua, toda afirmação que se produza nesse sentido apoia-se em critérios de caráter social.
Os diferentes grupos sociais se distinguem pelas formas de língua que lhe são de uso comum. Esse uso comum caracteriza o que se chama de norma linguística de determinado grupo. Como a respectiva norma é fator de identificação de grupo, o senso de pertencimento inclui o uso da forma de falar característica das práticas e expectativas linguísticas do grupo.

Nesse sentido, a norma, qualquer que seja, não pode ser compreendida apenas como um conjunto de formas linguísticas; ela é também (e principalmente) um agregado de valores socioculturais articulados com aquelas formas. Assim, numa sociedade diversificada e estratificada como a brasileira, haverá inúmeras normas linguísticas.

A língua que cobre todas as variações é, evidentemente, uma abstração necessária à sua descrição como uma língua particular. E mais, a cultura escrita, associada ao poder social, desencadeou, ao longo da história, um processo fortemente unificador, que visou e visa uma relativa estabilização linguística, buscando neutralizar a variação e controlar a mudança. Ao resultado desse processo, a esta norma estabilizada, costumamos dar o nome de norma-padrão ou língua-padrão.

A norma-padrão tem sua importância e utilidade como força centrípeta no interior do vasto universo centrífugo de qualquer língua, em especial as práticas de escrita. No entanto, o padrão não conseguirá jamais suplantar a diversidade porque para isso seria preciso o impossível: homogeneizar a sociedade e a cultura e estancar o movimento da história. Mesmo assim, o padrão terá sempre um efeito unificador sobre as demais normas, não estando, porém isento de também receber influências dessas mesmas normas.

Dessa forma, a função básica de um padrão de língua é estimular, pelo menos na escrita, uma relativa uniformização linguística num amplo e diversificado espaço sociocultural. Uma uniformização mesmo que sempre relativa, tem indiscutível relevância em sociedades do porte da nossa, no sentido de garantir uma base de comunicação supra-regional, transtemporal e multifuncional; ou seja, aquele padrão de língua caracterizado pala variação mínima na forma e máxima na função.

Nessa perspectiva, a existência de uma norma padrão é necessária como referência da produção linguística e como garantia da aceitabilidade de certo compromisso no contexto sócio-cultural em que estamos inseridos. O que os linguístas combatem é o caráter excessivamente artificial do padrão brasileiro; a concepção do padrão como uma camisa de força e todos os preconceitos daí advindos. Pode-se afirmar que são estas as questões que devem constituir o ponto de partida e o núcleo de qualquer debate e não a equivocada acusação de relativismo.

A necessidade de se repensar o padrão linguístico normativo no Brasil com base em sua representatividade histórica se insinua também nos pronunciamentos dos organismos institucionais que definem as políticas da educação pública, como se pode ler neste trecho dos PCNs (1999): “a abordagem da norma-padrão deve considerar a sua representatividade como variante linguística de determinado grupo social, e o valor atribuído a ela, no contexto das legitimações sociais”.

Todas as variedades nacionais possuem a sua norma-padrão de que a escola é especial depositária. E porque a escola é o lugar marcado pelo poder para orientação da sociedade, a evidência da não escolarização, marcada na língua, é elemento de discriminação e preconceito. Disso decorre que a escolarização é fator que proporciona as condições básicas de acesso de todos os membros da sociedade às estruturas do poder.

À medida que a realidade linguística brasileira aflora nas pesquisas, aumenta o debate sobre a identidade linguística nacional e suas óbvias repercussões no ensino da língua materna. Cabe ao linguísta, então, propor uma atualização da norma-padrão com base nos padrões de uso que se verifica nas normas linguísticas. Posição com base no conhecimento de que a língua, como organismo vivo, manifesta simultaneamente uma constante mudança e uma necessária estabilidade.

Para exemplificar a complexidade desse tema, cito alguns fatos da língua que emergem nas pesquisas em projetos como o NURC (Norma Linguística Urbana Culta) com alcance nacional (Rio de Janeiro, Salvador, Recife, São Paulo e Porto Alegre):

1) a preferência pela colocação proclítica dos pronomes átonos: me solta (em vez de solta-me); posso te ajudar (em vez de posso ajudar-te);

2) o uso de ele e respectivas variações como objeto direto do verbo: eu sempre encontro ele na feira;

3) o uso de a gente como expressão genérica ou indeterminadora da pessoa do discurso que inclui o enunciador: a gente quase não sai de casa;

4) o uso da forma pronominal tu com o verbo na terceira pessoa: tu sabe onde fica o cinema?;

5) a mistura de formas relativas a você e tu: se ela te convidar, você aceita?

Os informantes do NURC estão entre indivíduos de escolaridade máxima. A pesquisa revela a grande distância que existe entre a norma padrão, que provoca o imaginário nacional como representação idealizada de uma língua ideal, e a língua como realmente empregada pelas camadas privilegiadas. Revela também que a língua é constantemente tecida na inter-relação entre os dialetos de seus usuários. Esse conhecimento, infelizmente, está ausente de toda discussão não-acadêmica em torno das questões linguísticas do país.

O que foi dito acima é uma parcela ínfima do debate sobre uma ampla agenda de temas importantes – a variação e a mudança linguísticas, o ensino da língua nas escolas, a formação de professores de português, o lugar do ensino da gramática, as políticas de letramento e tantos outros. Para os leitores desse blog, que pretendem entender de modo claro e com critérios científicos coerentes os temas acima, deixo uma sugestão de leitura.

AZEREDO, J. C. Gramática Houaiss da Língua Portuguesa. 2 ed. São Paulo: Publifolha, 2008.

BAGNO, Marcos. Preconceito Linguístico: o que é, como se faz. 2 ed. São Paulo: Edições Loyola, 1999.

BAGNO, Marcos. Dramática da Língua Portuguesa: tradição gramatical, mídia & exclusão social. São Paulo. Edições Loyila; 2000.

BAGNO, Marcos... [et al.]. Norma Linguística. São Paulo. Edições Loyila; 2001.

BAGNO, Marcos... [et al.]. Linguística da Norma. São Paulo. Edições Loyila; 2004.

BAGNO, Marcos... [et al.]. Políticas de Letramento no Ensino: leitura, escrita e discurso. São Paulo: Parábola Editorial, 2007.

FARACO, C. A. Pesquisa aplicada em linguagem: alguns desafios para o novo milênio. São Pulo, v 17, Especial, p. 1-9, 2001.

PERINI, Mário A. Gramática Descritiva do Português. 4 ed. São Paulo: Editora Ática, 2004.

POSSENTI, S. Porque (não) ensinar gramática na escola? Campinas: Mercado de Letras, 1996.

SOARES, M. Linguagem e Escola. Uma perspectiva social. 10 ed. São Paulo: Ática, 1993.

Sites:

MARCOS BAGNO

http://marcosbagno.com.br/site/

http://marcosbagno.com.br/site/?page_id=745 (Polêmica ou Ignorância? Discussão sobre Livro Didático só Revela Ignorância da Grande Imprensa)

MEC – Ministério da Educação e do Desporto: Parâmetros Curriculares Nacionais: Língua Portuguesa. Brasília, Mec.

http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/livro02.pdf


NURC – Norma Urbana Culta

http://www.letras.ufrj.br/nurc-rj/