quarta-feira, 5 de maio de 2010

Sobre a morte da Simone, a vida e uma história de amor


Nessa quarta-feira, por volta das 18 horas, eu saía do cemitério Bento XVI, onde minha sobrinha acabara de ser sepultada, observando longamente a cena que se desenvolvia a minha frente. Minha irmã, Loreti Prates dos Santos, abraçada no seu esposo, Agenor Gonçalvez dos Santos, nascido em Três Passos; a impressão que eu tinha era que um carregava o outro. Tinham acabado de praticar os últimos atos do sepultamento da filha e pude imaginar a dor que sentiam naquele momento.

Voltei alguns anos na história naquela fração de segundos. Agenor e Loreti protagonizaram em Santiago uma rara história de amor. Rara mesmo, especialmente para os padrões atuais.

Loreti é minha irmã mais velha...sinceramente, sequer sei quantos anos ela é mais velha eu. Mas o suficiente para dizer quando eu tinha 5 anos de idade, ela já era mocinha. Uma moça muito bonita, loira, bem loira, magérrima, encantou-se com aquele militar que prestava serviços na artilharia. Ela nunca tinha tido um namorado e nem ele nunca tinha tido uma namorada. Casaram-se em 1966 (foto do casamento). Todos que os conhecem dizem que vivem um caso de amor perfeito, nunca brigaram, nunca tiveram divergências. Tiveram dois filhos, José Rossano Prates dos Santos e Simone Prates dos Santos. Rossano é militar e Simone estudou medicina veterinária, largou a faculdade no terceiro ano e depois formou-se em ciências contábeis. Era funcionária concursada da Secretária da Fazenda da Prefeitura Municipal de Santiago. Não tínhamos relações, não nos falávamos, vivíamos em mundos diferentes, valores diferentes, padrões diferentes, conceitos diferente, mas nem por isso deixei de nutrir um carinho especial por Simone e Rossano.

Ao saber da morte dela, hoje, mal tendo chegado em Santiago, cai numa profunda introspecção. Ateus sofrem mais que os crentes. Os últimos operam com a ilusão da seqüência da vida, seja pelo viés reencarnatório, seja pelo viés da vida eterna, nos céus, ao lado de Jesus, em companhia de Deus. Eu queria tanto acreditar na crença da vida após a morte, com certeza seria mais feliz e menos céptico.

Olhando o corpo inerte da Simone (foto), vendo a dor e o sofrimento da Loreti e do Agenor, pensei que seria tão bom que existisse mesmo essa seqüência de vida e que eles pudessem se reencontrar um dia, afinal se amavam tanto, que o sofrimento deles era algo contagiante...de certa forma, introjetei-me na dor deles e, no mimetismo, pude sentir a intensidade do sofrimento.

Que lógica tem essa morte?

Simone praticamente não viveu, foi golpeada da vida ainda muito jovem, ainda iniciando sua caminhada. Às quatro horas da manhã adoeceu, ficou mal, foi levada ao HCS e – segundo o irmão dela – faleceu dentro da ambulância, posto que ao chegar no nosocômio já estava sem vida. Faltou-lhe ar, o coração falhou...e foi-se tudo.

Embora sem contato com essa minha irmã e seus familiares, nunca pude esquecer-me que Simone desde que começou a engatinhar os primeiros passos sempre foi muito agarrada comigo. E foi assim, lembro-me muito bem dela aos 2, 3, 4, 5,6, 7 anos...sorridente, dentinhos saltados e o apelido de “côca”.

Passaram-se os anos e ela ficou mocinha. Um dia, no ano de 1984, ela ligou-me para Porto Alegre...queria um curso de espanhol e não conseguia em Santiago. Lembro-me como se fosse hoje, fui até o Martins Livreiro, comprei a coleção com fitas cassetes e os livros; e mandei de presente para ela.

Depois, com o passar dos anos, uma terrível crise de abateu sobre nossa família...juízos morais, valores...e cada um seguiu seu rumo. Nunca mais nos falamos.

Com surpresa, pouquíssimos dias atrás, sentado naquele banco de entrada a SEFAZ, ouvi uma voz dócil me perguntando: quando nasce a guriazinha?

Era ela, perguntando-me sobre a NINA.

Fiquei até surpreso com a pergunta e com o fato dela estar se dirigindo a mim. Mas, enfim, sorri e lhe respondi: “em junho”. Ela se foi em direção a secretaria, tão breve, quanto à pergunta.

Hoje, ao chegar no velório, Loreti me contou que ela estava feliz porque eu ia ter uma filha e ela uma priminha. São as estranhas manifestações de sentimentos e afetos, que a vida não permitiu que fossem revelados.

Simone deixou o mundo sozinha. Vivia na casa dos pais. Morreu ao lado dos pais, nos braços dos pais. Não constituiu família. Pensei que iam-na colocá-la no túmulo dos meus pais...mas não...ela ficou sozinha no cemitério de baixo, num túmulo só seu.

Simone se foi. Partiu desse mundo. Ficou o eco da dor e um casal de pais sofrendo, profundamente amargurados, machucados. E o Rossano, irmão que sempre a amou, mal conseguia controlar o permanente choro, sintoma da inconformidade com a perda. Falam muito que era à hora dela, vontade de Deus, sei lá, cada um tem uma teoria para explicar a morte. Eu acho que a morte é um passo no escuro, no breu, que a gente morre e apaga-se tudo. Que bom que não seja assim. Que bom que exista algo mais, seja o que for, a fantasia ajuda a amenizar a dor diante de uma realidade tão cruel.