domingo, 27 de março de 2011

Proh Pudor*, a lenda de Prometeu e os homens de barro

Essa expressão latina* marcou época nos editoriais do nossos jornais standarts dos anos 40, 50 e 60. Quer dizer, em bom português Oh! Vergonha!

Falando em vergonha, quando sei do despudor social que habita as almas de nossa sociedade, ocorre-me, então, a lenda de Prometeu e o Abutre.

Promoteu, para quem gosta das lendas gregas, foi um titã que povoou a fertilidade das imaginações. Era filho de Climena, a ninfa dos mares, e de Jápeto. Tinha um irmão também famoso: Atlas.

Zeus, segundo a lenda, lhe permitiu o mágico dom de fazer homens de barro e água, sendo que insatisfeito com esses limites impostos pelo deus, rouba dos céus o fogo para dar a essas criaturas de barro e água. Aqui, muitos intérpretes de lendas, apóiam as razões de Prometeu, pois entendem que o fogo seria a vida. Pari passu com o apoio a Prometeu, fica difícil explicar as razões da fúria de Zeus, que o mandou amarrar a cadeias do Cáucaso, onde uma uma famigerada ave de rapina encarregava-se de devorar seu fígado a bicadas.

Sabemos, pelo decorrer da lenda, que o castigo só teve fim ao cabo da ação de Hércules, que realizando os 12 trabalhos, liberta-o, afinal, matando a ave de rapina que devorava o fígado de Prometeu, que roído de dia, crescia à noite.

O deus grego era profundamente violento, perverso e insensato com a dimensão de justiça e fraternidade dos seus. Nesse contexto, Prometeu deixou-nos um legado fantástico, pois sua desobediência justifica-se pela nobreza da causa e pela extensão do gesto de dar luz através do fogo aos homens de barro os quais tinha o dom de produzir.

A grandeza de Prometeu não podia suportar a indecência de ver homens de barro, sem alma, sem brilho, sem fogo. Metáforas a parte, cabe questionar sobre os homens de barro que vivem em sociedade, por exemplo, na nossa. São acríticos, subservientes, aceitam tudo o que lhes contam como verdade, não vislumbram outros horizontes, são conformados, mal entendem o processo de dominação e não raramente são massa de manobra e objeto de manipulação dos opressores. A malversação de vidas e almas, a manipulação, o grotesco, fazem escola em Santiago. Somos todos produtos e síntese de um mesmo complexo enredo social. Somos co-participantes da mesma senda, somos engrenagem do mesmo tecido social, conjugamos dos mesmos hábitos, somos cúmplices pela consuetudinação de certos hábitos e práticas, da mais simples a mais perversa manifestação. O questionamento desses hábitos instados nos micro-poderes do limite municipal podem significar a exposição dos nossos fígados ao abutre social, que nos devora com a ferocidade da repressão, da censura embutida em códigos de sociedades ridículas, da opressão econômica e da leviatã serpêntica dos serviçais que mal compreendem sua própria manipulação e sua condição de oprimido/usado/manipulado.

Sustento, que afora o aparato estatal, usado como instrumento de repressão, paira em nosso meio uma certa lex non scripta que é justamente o conjunto de regras sociais não escritas, um hábito de aceitação através dos tempos, especialmente pela tradição. A mesma tradição que acha que negros são seres inferiores, que prostituta é saco de pancada e que criança deve mesmo ser jogada no serviço, que homossexuais são seres desprezíveis. São os mesmos que aceitam contratos com famigeradas cooperativas de contratação de mão-de-obra que burlam toda a legislação trabalhista do país, que impõem jornadas de trabalho de até 16 horas por dia, sendo a média em torno de 12. São os mesmos códigos e a mesma tradição que fomentam a desigualdade sócio-econômica, que quer manter os pobres e os miseráveis na miséria, prontos para formar o exército industrial de reserva, mão-de-obra barata e desqualificada. Aliás, são os mesmos que medem a aceitação social pela origem da família, pelo sobrenome e pela quantidade de hectares e bens patrimoniais.

Sem querer fazer uma lição de abismo, como o fez Júlio Verne, não há como não entristecer com a doença que crassa nosso tecido social. A malandragem é vista como sinônimo de esperteza e a opressão contra os fracos e pobres é minimizada e entendida como a arte de se dar bem na vida. Valores nobres se tornam banais, como a pornochanchada social, que a tudo banaliza.

Para resistir ao abutre e seus códigos consuetudinados, para não sermos o Prometeu vitimado ante a fúria de um Zeus que tudo pode e a ninguém deve explicações, resta-nos a carapuça do dog not eat dog, pois só nos resta a escrita para o enfrentamento e a resistência. E entender os homens de barro que vivem sem fogo e sem luz. Nietzche já os chamou de cadáveres e insistiu que queria andar ao lado de homens livres. Mas o que fazer quando cadáveres e bonecos de barro nos cercam por todos os lados?